A verdade é que você sempre perde algo. E com sorte, metade da minha memória foi poupada.

Ele era um amigo, ou pelo menos o que eu pensava que fosse. Dançávamos juntos, éramos até um par. 

Já tínhamos nos envolvido, pouco antes do fato, não tinha sido legal e eu já estava conhecendo outra pessoa, então não aconteceu mais do que uma vez. E aos poucos ficou enciumado, ainda mais com convites que eu o negava.

Um dia, no retorno de um ensaio, pela madrugada, depois de levar outras colegas em casa, parou o carro numa rua sem saída e me ofereceu uma proposta: me contaria algo sobre  a pessoa em que estava comprometida, em troca, deveria transar com ele.

Não quis saber do que se tratava, discutimos apenas isso no início e pedi para me levar embora. Arrancou o carro e em seguida parou, não havia andado nem 10 metros, então começou a insistir tentando forçar beijos e me manipular com frases de que "ele não me merecia" , "estava sendo fiel à toa", "ele não iria ficar sabendo"...

No entanto, todas as manipulações se tornaram a toas, em vão. Só insistia para me levar para casa. Mas nada adiantava, se passavam minutos de insistência e chantagens. Tentava até abrir a porta do carro para sair, mas então andava para eu não sair. E assim se passaram minutos, tentando beijos à força, onde meu rosto chegava a amassar o vidro do carro.

Era frio, os vidros embaçados, total silêncio na rua, lembro-me da roupa em que estava, uma legging, um top vermelho marsala , uma camiseta e jaqueta. Havia tanto medo naquele espaço, tantas questões, nem me passava gritar ou pedir socorro.

Por tanto tempo me culpei, passou-se duas horas e estávamos no mesmo lugar, apenas físico, porque a instabilidade dele já havia aumentado e eu já estava muito mais assustada, nesse ponto, só imaginava em ceder e fingir. Como num assalto, não resistir, entregar. Foi o que fiz. Me despi e minha memória travou. 

Quando retornou, já estava me vestindo novamente e preocupado perguntou se eu não o relatoria.

Quando cheguei em casa, eu só conseguia me olhar no espelho do banheiro e chorar em silêncio para não acordar ninguém, me sentia suja, confusa, traída, enganada, perdida.

Com sorte dele é claro, levei muito tempo para entender e definir como estupro, isso fez as provas se perderem e minha chance de denunciar ir pelo cano da água. Além disso, me senti culpada e julgada pelos que sabiam, me sentia nua cada vez que dizia a alguém, exposta.

Não é fácil esconder, principalmente dos pais, aqueles que os protegem, a qual não gostaria que tomassem decisões precipitadas. 

Perdi minha grande paixão, a dança, infelizmente, tive que abrir mão já que sua chantagem corria pelos meus passos. Já o vi, já soube de outras ações e já fui muito julgada por não denunciá-lo, mas a verdade é que quanto mais você fala, mais você perde, quanta mais se lembra, mais exposta está, quanto mais pensa, mais ódio remói. E não queremos nada disso, só quem sabe o que é viver numa sociedade sem sororidade, sabe o que é "não ser vítima".